Mitologias (1957), Roland Barthes
Embora tenha decidido incluir este texto (breves notas) num capítulo intitulado “O Vinho na Arte”, Mythologies (1957), de Roland Barthes, não é um objecto artístico. Como o escritor francês refere num momento introdutório, nesta obra estamos perante textos reflexivos escritos entre 1954 e 1956:
Tentava eu reflectir então regularmente sobre alguns mitos da vida quotidiana francesa. O material desta reflexão pôde apresentar-se como muito variado (um artigo da imprensa, uma fotografia de um semanário, um filme, um espectáculo, uma exposição), e o assunto como muito arbitrário: tratava-se, evidentemente, da minha própria actualidade.
A reflexão sobre a actualidade levou Barthes a discutir algo que interessa a este espaço. Em cerca de quatro páginas e com o título “O Vinho e o Leite”, Barthes discute a mitologia do vinho em França. Segundo ele, trata‑se de “uma bebida-tóteme”, uma “substância mítica”, à qual prefere contrapor não a água mas o leite:
o vinho é mutilante, cirúrgico, provoca a transmutação e o parto: o leite é cosmético, liga, recobre, restaura. Além disso, a sua pureza, associada à inocência da criança, é uma garantia de força, mas de uma força não revulsiva, não congestionante, e sim calma, branca, lúcida, idêntica ao real. […] Mas o leite continua a ser uma substância exótica; é só o vinho que é nacional.
Escrito há mais de 70 anos e com um grande foco na “actualidade”, é evidente que algumas das observações podem, hoje, não parecer tão pertinentes. E se já na década de 50 Barthes escrevia “se é verdade que o vinho é uma bela e boa substância, não é menos verdade que a sua produção tem um grande peso no capitalismo francês”, o que diria no século XXI, em pleno capitalismo desenfreado?
E ainda que o texto se ocupe do quotidiano francês, Barthes consegue de forma muito feliz encontrar definições universais (e muito actuais). Observa que, branco ou tinto (neste texto faltava talvez pensar acerca de algo tão francês como o champagne), o vinho “é uma substância de conversão capaz de voltar do avesso as situações e os estados e de extrair dos objectos o seu contrário”. E prossegue:
de fazer, por exemplo, de um fraco um valente, de um silencioso um fala-barato; daí a sua velha hereditariedade alquímica, o seu poder filosófico de transmutação ou de criação ex-nihilo.
Estamos, portanto, na presença de um líquido tremendo, “mil vezes repetido no folclore, nos provérbios, nas conversas e na Literatura”. Outro aspecto curioso é o facto de Barthes defender que, em França, o vinho, contrariamente a outras substâncias alcoólicas (whisky), nunca é bebido para provocar embriaguez. A (possível, provável) embriaguez é uma consequência, “jamais uma finalidade”. E por isso me agrada muito a definição de vinho que Barthes esboça a meio do texto: “o prolongamento de um prazer”.
Barthes, Roland (1957), Mythologies; ed.ut.: Mitologias, tradução e prefácio de José Augusto Seabra, Lisboa, Edições 70, 1997.